segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

'O HOMEM TORNA-SE TUDO OU NADA, CONFORME A EDUCAÇÃO QUE RECEBE'

'Fingi ser  gari por 8 anos e vivi como um ser  invisível'

Psicólogo varreu as  ruas da USP para concluir sua tese de mestrado  da 'invisibilidade pública'. Ele comprovou que,  em geral, as pessoas enxergam apenas a função  social do outro. Quem não está bem  posicionado sob esse critério, vira mera sombra  social.


Plínio Delphino, Diário de São  Paulo.
O psicólogo social Fernando Braga da Costa vestiu uniforme e trabalhou oito anos como  gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo.  Ali, constatou que, ao olhar da maioria, os  trabalhadores braçais são 'seres invisíveis,  sem nome'. Em sua tese de mestrado, pela USP,  conseguiu comprovar a existência da  'invisibilidade pública', ou seja,  uma percepção humana totalmente prejudicada e  condicionada à divisão social do trabalho, onde  enxerga-se somente a função e não a  pessoa.
Braga trabalhava apenas meio período  como gari, não recebia o salário de R$ 400 como  os colegas de vassoura, mas garante que teve a  maior lição de sua vida:
'Descobri  que um simples bom dia, que nunca recebi como  gari, pode significar um sopro de vida, um  sinal da própria existência', explica o pesquisador.
O psicólogo sentiu na  pele o que é ser tratado como um objeto e  não como um ser humano. 'Professores que me  abraçavam nos corredores da USP passavam por  mim, não me reconheciam por causa do uniforme. As vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos  pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se  tivessem encostado em um poste, ou em um  orelhão', diz.
No primeiro dia de trabalho  paramos pro café. Eles colocaram uma garrafa  térmica sobre uma plataforma de concreto. Só que  não tinha caneca. Havia um clima estranho no  ar, eu era um sujeito vindo de outra classe, varrendo rua com eles. Os garis mal conversavam comigo, alguns se aproximavam para ensinar o  serviço. Um deles foi até o latão de lixo pegou  duas latinhas de refrigerante cortou as latinhas  pela metade e serviu o café ali, na latinha  suja e grudenta. E como a gente estava  num
grupo grande, esperei que eles se servissem  primeiro. Eu nunca apreciei o sabor do café.  Mas, intuitivamente, senti que deveria tomá-lo, e claro, não livre de sensações ruins. Afinal, o cara tirou as latinhas de refrigerante de  dentro de uma lixeira, que tem sujeira, tem formiga, tem barata, tem de tudo. No momento em  que empunhei a caneca improvisada, parece que  todo mundo parou para assistir à cena, como se  perguntasse: 'E aí, o jovem rico vai se  sujeitar a beber nessa caneca?' E eu  bebi. Imediatamente a ansiedade parece que  evaporou. Eles passaram a conversar comigo, a  contar piada, brincar.
O que você sentiu na  pele, trabalhando como gari?
Uma vez, um dos  garis me convidou pra almoçar no bandejão central. Aí eu entrei no Instituto de Psicologia para  pegar dinheiro, passei pelo andar térreo, subi  escada, passei pelo segundo andar, passei  na biblioteca, desci a escada, passei em frente  ao centro acadêmico, passei em frente a  lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiz  todo esse trajeto e ninguém em absoluto me viu.  Eu tive uma sensação muito ruim. O meu corpo  tremia como se eu não o dominasse, uma angustia, e  a tampa da cabeça era como se ardesse, como se  eu tivesse sido sugado. Fui almoçar, não senti  o gosto da comida e voltei para o trabalho  atordoado.
E depois de oito anos  trabalhando como gari? Isso mudou?
Fui me  habituando a isso, assim como eles vão se  habituando também a situações pouco saudáveis.  Então, quando eu via um professor  se aproximando - professor meu - até parava de  varrer, porque ele ia passar por mim, podia  trocar uma idéia, mas o pessoal passava como se  tivesse passando por um poste, uma árvore, um  orelhão.
E quando você volta para casa,  para seu mundo real?
Eu choro. É muito triste,  porque, a partir do instante em que você  está inserido nessa condição psicossocial, não  se esquece jamais. Acredito que essa  experiência me deixou curado da minha doença  burguesa. Esses homens hoje são meus amigos.  Conheço a família deles, freqüento a casa deles  nas periferias. Mudei. Nunca deixo de cumprimentar  um trabalhador.
Faço questão de o trabalhador  saber que eu sei que ele existe. Eles  são tratados pior do que um animal doméstico,  que sempre é chamado pelo nome. São tratados  como se fossem uma 'COISA'.
*Ser  IGNORADO é uma das  piores sensações que existem na  vida!"

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