Professora Mirtes C. Marins de Oliveira
Mestre e Doutora em Educação PUC-SP
Coord. do Bacharelado em Artes Plásticas da FASM
Educação, debate, idéias, produção científica e difusão de conhecimentos. No Facebook www.facebook.com.br/historicizando
Qual a relação de Foucault com a educação? Uma relação óbvia é posta pelo tema do poder. Foucault estudou e descreveu práticas disciplinares. A escola é um lugar chave para “disciplinas”. Assim, estudar o poder na escola, o que se faz nas práticas pelas quais o poder que se faz sentir no âmbito escolar, é algo tem tudo a ver com Foucault. A questão é saber por qual razão se faz isso?
A melhor razão ainda é a do próprio Foucault. E isso é visível quando perguntamos a Foucault no que ele esteve interessado.
A resposta de Foucault sobre seus interesses foi só uma: o sujeito. A modernidade se preocupou com o sujeito como instância na qual o conhecimento se dá. Caso tenhamos que estudar o conhecimento, então, para os modernos o melhor seria estudar, antes, aquele que conhece – o sujeito. Os filósofos modernos, todos eles, elaboraram o seu desenho de sujeito – o seu mapa do eu. Assim, se há falhas no conhecimento, elas devem ser procuradas antes na instância que conhece que propriamente na narrativa que mostra o conhecido. Foucault entendeu muito bem esse objetivo dos modernos. Mas ele reconsiderou o problema da seguinte maneira: talvez eu não tenha que me preocupar com o sujeito como o local do conhecimento e o elemento que criva o que é o verdadeiro e o falso ou, ao menos, dá o crivo para julgar o verdadeiro e o falso, mas tenha mesmo de saber como é que criamos a figura do sujeito.
Foucault buscou contar a história da subjetividade. Para tal, procurou ver a constituição do indivíduo e, então, a partir daí, contar como a filosofia, por abstração, montou seu conceito de sujeito moderno. A hipótese de Foucault foi a seguinte: os mecanismos de poder, ou seja, as práticas disciplinares, ao longo de toda uma história da cultura e da civilização, buscaram fazer o que Nietzsche chamou de processo de tornar o homem um animal capaz de prometer e cumprir o prometido. Sendo assim, são as práticas disciplinares que forjam aquele que é “consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos”, o sujeito, aquele que promete e cumpre. O homem assim promete porque a vida social implica em promessas. Cumpre por receios, medos, condicionamentos e, principalmente, culpa e angústia diante do possível arrependimento. Tudo isso, que é tipicamente o que preenche uma subjetividade, é o que se fez por meio de práticas disciplinares. Na escola, então, isso é mais que visível, uma vez que toda a educação moderna é, explicitamente, uma educação voltada para a criação do sujeito no indivíduo.
As práticas disciplinares passaram de violentas para sutis e, então, foram mais eficazes. Isso Foucault mostrou na sua visão história da modernidade. Essas práticas mostraram o que Foucault chamou de positividade do poder. O poder molda, é claro, mas não reprime no sentido do não deixar fazer; o poder se exerce no sentido de tornar o agente mais ativo do que é, fazendo o que é necessário para sua produtividade social enquanto sujeito que se constitui. A construção da identidade, dos sentimentos, das formas de consciência e dos modos de responsabilidades, ou seja, tudo que constitui um sujeito, é algo que, na escola, encontra um ambiente propício para acontecer.
Chegamos, então, na razão pela qual se pode estudar a escola, na ótica de Foucault, e ao mesmo tempo não sair dos objetivos pelos quais se estuda o poder, inclusive na escola. Foucault está preocupado com os processos de subjetivação. O exercício do poder, inclusive e sobretudo na escola, mostra esse panorama.
Para que Filosofia da Educação?
Talvez seja mais pertinente perguntar: para que filosofia na educação? A resposta é simples: porque educação é, afinal de contas, o próprio “tornar-se homem” de cada homem num mundo em crise.
Não há como educar fora do mundo. Nenhum educador, nenhuma instituição educacional pode colocar-se à margem do mundo, encarapitando-se numa torre de marfim. A educação, de qualquer modo que a entendamos, sofrerá necessariamente o impacto dos problemas da realidade em que acontece, sob pena de não ser educação. Em função dos problemas existentes na realidade é que surgem os problemas educacionais, tanto mais complexos quanto mais incidem na educação todas as variáveis que determinam uma situação. Deste modo, a “Filosofia na educação” transforma-se em “Filosofia da Educação” enquanto reflexão rigorosa, radical e global ou de conjunto sobre os problemas educacionais. De fato, os problemas educacionais envolvem sempre os problemas da própria realidade. A Filosofia da Educação apenas não os considera em si mesmos, mas enquanto imbricados no contexto educativo.
Penso que disto decorrem duas conseqüências muito simples, óbvias até! A primeira é que todo educador deve filosofar. Melhor ainda, filosofa sempre, queira ou não, tenha ou não consciência do fato. Só que nem sempre filosofa bem. A este respeito afirma Kneller (1972. p. 146):“se um professor ou líder educacional não tiver uma filosofia da educação, dificilmente chegará a algum lugar. Um educador superficial pode ser bom ou mau. Se for bom, é menos bom do que poderia ser e, se for mau, será pior do que precisava ser”.
Que problemas no campo da educação exigem de nós uma reflexão filosófica, nos termos acima explicitados? São muitos. Permitam-me apontar apenas alguns.
Já que a educação é o processo de tornar-se homem de cada homem, é necessário refletir sobre o homem para que se possa saber o “para onde” se deve orientar a educação. É necessário, porém, que esta reflexão não seja unicamente teórica, abstrata, desencarnada. É preciso levar em conta a situação espácio-temporal em que ocorre o processo. Com efeito, não importa apenas o “tornar-se homem”, mas o “tornar-se homem hoje no Brasil”. Só desta forma podemos estabelecer com clareza o que, por exemplo, se tem convencionalmente chamado de “marco referencial”, a partir do qual, numa instituição educativa, currículo, planejamento e atividades podem atingir um mínimo de coerência e de eficiência.
Que teoria de aprendizagem adotar? Que métodos e técnicas utilizar? Já afirmavam Binet e Simon correr “o risco de um cego empirismo quem se conforma em aplicar um método pedagógico sem investigar a doutrina que lhe serve de alma”. Não há métodos neutros. Não há técnicas neutras. No bojo de qualquer teoria, de qualquer método, de qualquer técnica está implícita uma visão de homem e de mundo, uma filosofia.
A filosofia é, assim, norteadora de todo o processo educativo. O maior problema educacional brasileiro sempre foi e ainda é, a meu ver, o denunciado por Anísio Teixeira no título de uma de suas obras principais: “Valores proclamados e valores reais na educação brasileira”. Quer em nível de sistema, quer em nível de escola, proclamamos belíssimos princípios filosófico-educacionais. Na prática, entretanto, caminhamos ao sabor das ideologias e das novidades e – o que é pior – sem nos darmos conta da incoerência existente entre nossas palavras e nossos atos.
A segunda conseqüência a ser tirada do que antes dissemos é quetambém o educando deve filosofar, ou seja, deve refletir sistematicamente, buscando as raízes dos problemas - seus e de seu tempo - de modo a formar uma “visão de mundo” e adquirir criticamente princípios e valores que lhe orientem a vida. Só assim serão homens e não robôs. É preciso, pois, municiá-lo de instrumentos racionais e afetivos para que se habitue a ser crítico, a não se contentar com qualquer resposta, a colocar sempre e em tudo uma pitada razoável de dúvida, a cavar fundo e não se intimidar perante a tarefa ingrata de estar sempre questionando e se questionando.
A partir de minha já longa experiência de magistério, posso afirmar que há sempre fome de filosofia. Basta levantar um problema nos termos acima descritos para que se alcem as antenas, sobretudo as juvenis! Talvez porque, tendo uma percepção não muito nítida, mas agudamente sentida da crise, faltem aos jovens o instrumental necessário para explicitá-la, analisá-la e julgá-la, em razão do banimento a que assistimos da filosofia, até mesmo de nossos currículos escolares.
Conclusão
Não há, portanto, como fugir à filosofia no campo da educação. Ela se relaciona intimamente com a função nem sempre levada a sério e, não obstante, fundamental, de avaliar. De fato, a avaliação resume, de certo modo, ou acompanha, como um vetor ou como um eixo orientador, todo o processo educacional. Ela se faz presente no início do processo, ao estabelecermos as metas; no seu decurso, quando traçamos e executamos as estratégias; no final, quando julgamos o que e quanto foi cumprido. Ora, avaliar é emitir juízos de valor e estes implicam sempre, queiramos ou não, consciente ou inconscientemente uma posição filosófica, uma filosofia.
Uma palavra, talvez, resuma tudo o que tentamos dizer: a filosofia é o aval da educação!
Referências bibliográficas
BOCHENSKI, J. M. Diretrizes do pensamento filosófico. São Paulo: EPU, 1973. 119 p.
JASPERS, Karl. Iniciação filosófica. Lisboa: Guimarães, 1977. 173 p.
SAVIANI, Dermeval. Educação; do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez, 1980. 224 p.
KNELLER, Georges. Introdução à filosofia da educação. 4.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. 167 p.
Extraído de Estudos Leopoldenses, São Leopoldo, v. 21, n. 85, p. 29-36. Revisado e modificado pelo autor do blog em 23/07/2012.