Juliana Beatriz Almeida de Souza
1717. Outubro. Guaratinguetá. Três pescadores – João Alves, Domingos Garcia e Felipe Pedroso – jogavam insistentemente suas redes no rio Paraíba. A época não estava boa para a pesca. Havia horas eles tinham posto suas canoas naquelas águas e, até aquele momento, nenhum resultado. Não podiam, entretanto, desistir.
Tinham sido convocados para que pegassem muitos peixes. O Governador da Capitania de Minas Gerais e São Paulo – Dom Pedro de Almeida Portugal -, em viagem para o interior da Capitania, ia passar por aquela vila. Era preciso bem recebê-lo.
Mais uma vez, João Alves lançou sua rede. Ao puxá-la, no fundo da malha viram um pequeno objeto de cor escura. Identificaram-no como sendo a imagem de Nossa Senhora da Conceição, sem a cabeça. João Alves atirou de novo a rede. Veio, então, a cabeça da imagem. Os três guardaram-na na canoa, voltando-se, em seguida, para a pesca. Suas redes vieram, então, à tona abarrotadas de peixes, enchendo os barcos em pouco tempo.
Caía a noite no Vale.
Essa breve narrativa inicial, com proposital ausência de detalhes, procura mostrar como se deu o encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida. As graduações e matizes que se podem imprimir a esse relato possibilitam conotações antes não imagináveis.
Encontrada em 1717, a imagem de Nossa Senhora teve seu culto oficializado em 1743. Nos primeiros anos a imagem ficou com Felipe Pedroso – um dos três pescadores –, que a conservou em sua casa, onde ela foi venerada pela família e seus vizinhos. Após sua morte, seu filho – Atanásio Pedroso – construiu-lhe um oratório e um altar. E a devoção foi crescendo.
Já na segunda metade do século XVIII, capelas dedicadas a Nossa Senhora Aparecida foram construídas em outros lugares, mesmo fora do Vale do Paraíba, para onde sua “fama” fora levada por tropeiros, mineradores, sertanistas.
O culto à Senhora de Aparecida, então, começou entre os colonos, os moradores de Porto de Itaguaçu, no Vale do Paraíba. Primeiro, as famílias – poucas, ainda – reuniam-se todos os sábados para diante da imagem rezar o terço e cantar em seu louvor. Depois, eram os que passavam pelo caminho e vinham agradecer-lhe ou pedir sua intercessão.
No século XIX, as peregrinações e romarias à capela, registradas pelos viajantes do período – Spix e Von Martius, em 1817 1, por exemplo –, significaram a expansão do culto, que rompeu os limites da Província de São Paulo.
E a capela já recebia visitas “ilustres” àquela época, como a da Princesa Isabel e do Conde D’Eu quando da festa da Imaculada Conceição, em 8 de dezembro de 1868. Consta, inclusive, que na ocasião a princesa doou a Nossa Senhora uma coroa de ouro que é até hoje usada na imagem.
Com o início da República, veio o fim do Padroado, a laicização do Estado e a romanização da Igreja no Brasil. Mas essa expressão da religiosidade popular resistiu e cresceu, parecendo não ter sofrido os cerceamentos que tiveram outras festas populares, como a de Nossa Senhora da Penha ou do Divino, ambas no Rio de Janeiro. O final do século XIX significou para a Igreja o seu desenvolvimento institucional, com o fortalecimento das suas estruturas internas.
Novas dioceses foram criadas, aumentou o controle episcopal sobre o clero, as ordens religiosas cresceram e veio um novo fluxo de clero estrangeiro. Foi nessa época – 1894 – que chegaram ao Brasil os primeiros missionários redentoristas. Vindos da Baviera, eles assumiram, em janeiro de 1895, a direção do Santuário de Aparecida, procurando dar-lhe uma vida religiosa dentro dos moldes tridentinos.
O padre Júlio Brustoloni 2 aponta como primeira das causas para a expansão do culto a ressonância da imagem na vida cotidiana dos fiéis, ou melhor, no sentimento religioso popular. De um “altar de paus” a santuário nacional. De povoado ao redor da capela à cidade. De culto popular ao padroado do País. São mais de dois séculos de história devocional. Uma devoção que se expandiu e ganhou proporções deixando-nos a pergunta: por quê? Em uma religião de tantos santos, em meio a um povo de tantos mártires, por que Nossa Senhora Aparecida foi a escolhida para ser a Padroeira do Brasil?
Um caminho possível para desvendarmos como e por que essa devoção foi tomando tal dimensão, ao longo dos anos, é procurar perceber, nas descrições da “aparição”, que simbolismos e que significados lhe foram atribuídos.
Ao analisarmos os relatos que recontam o encontro da imagem, pelo menos dois traços comuns podem ser notados. O primeiro deles é a ênfase dada à “maternidade” de Maria, ou melhor, à virgem de Aparecida. Ela é mãe do povo brasileiro. Mãe dos pobres, inclusive, ou, talvez, em especial. A metáfora Maria/Mãe está presente tanto na devoção popular quanto na doutrina oficial da Igreja, ainda que em nuances diferentes.
Para a doutrina oficial, Maria é a Mãe carinhosa, mas Cristo, como filho de Deus, está em uma posição superior à sua. Entretanto, dentro da religiosidade popular, Maria, Mãe de uma família de santos e, mais do que isso, do povo, encontra-se em uma posição de destaque. Maria, assim, cumpre, como os santos, papel de protetora.
Dela se esperam “milagres” que, na realidade, correspondem ao restabelecimento da ordem perturbada. Em troca dos pedidos, “promessas”, e a reafirmação da fidelidade eterna.
O segundo traço comum, em geral, nas narrativas da “aparição” é a tentativa de se encontrar na situação colonial o “Brasil” contemporâneo, explicando o passado pelo que será o seu futuro. Os pescadores – homens livres e pobres, mestiços – são uma espécie de “embrião” do ser “brasileiro”.
Não raros nesses relatos são apontados indícios do sentimento de nacionalidade, de brasilidade, mesmo, no esforço de imprimir à devoção um caráter nacional desde o começo.
A história de Nossa Senhora Aparecida é, de fato, muito rica. Em setembro de 1929, logo após o Congresso Mariano, no qual se comemorou o Jubileu de Prata da Coroação da Virgem, o episcopado brasileiro pediu ao Papa que ela fosse oficialmente reconhecida Padroeira do Brasil. A 16 de julho de 1930, Pio XI declarava aceito o pedido.
Os anos 30 para a Igreja, foram anos em que, defendendo a hierarquia e a ordem, ela buscou sua consolidação interna e a reafirmação da sua imagem na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, o Estado procurou instaurar uma “nova ordem” movida pelo trabalho e baseada na conservação da família tradicional, a fim de conseguir o consenso e a conciliação das forças sociais e políticas.
A religião católica podia bem ter sido um dos elos capazes de unir a todos dentro do processo de formação do “homem novo” 3 tão caro à legitimação da ideologia política do Estado.
A escolha de Nossa Senhora Aparecida, talvez, então, faça parte da tentativa de se criar uma identidade nacional que não passava só pela condição de trabalhador mas também pela de ser católico.
A festa de proclamação do Padroado, em 31 de maio de 1931, no Rio de Janeiro, então capital federal é, nesse sentido, emblemática. A imagem deixou seu nicho e fez sua peregrinação de Aparecida à capital. Antes de ser colocada no altar, a virgem foi apresentada ao presidente Getúlio Vargas, que junto com sua família lhe foi prestar homenagem. Dom Leme, que teria sido o principal articulador do movimento que encaminhou o pedido a Roma, deu início ao ato na presença de devotos e representantes das autoridades civis, militares e eclesiásticas.
Nossa Senhora Aparecida parece ter mesmo a favor de si muitos dados para congregar o “Brasil” em torno de sua devoção. Sua imagem falava bem aos mais desfavorecidos e podia ser, então, de todos os brasileiros. Encontrada por pescadores, trabalhadores simples, seu primeiro “templo” foi a casa de uma família.
O local da “aparição” – São Paulo – fica entre o caminho do mar – Rio de Janeiro – e o interior – Minas Gerais. E basta olhá-la para descobrir mais um elemento profundamente significativo: a sua cor negra. Faz-nos pensar porque uma religião “branca” tenha escolhido uma virgem negra 4 para padroeira de um país que se diz branco.
Hoje, ainda se pode questionar quantos conhecem de fato a história da Virgem de Aparecida.
Pode-se mesmo dizer que o povo e o clero nunca rezaram para a mesma imagem 5. Mas não se pode desprezar a importância de se considerar a sua escolha para uma melhor compreensão do período e da sociedade brasileira, marcada pela presença da Igreja Católica desde a sua colonização. Se, como diz Robert Darnton 6, cabe ao historiador investigar como as pessoas “comuns” entendem e pensam o mundo, assim como expressam a realidade em seu comportamento, o entendimento da estrutura das crenças no espaço do cotidiano pode ser relacionado com as conjunturas históricas mais amplas.
A religiosidade torna-se uma estratégia de vida, à medida que faz parte das diretrizes de organização do cotidiano dos populares, na busca de uma identidade própria.
NOTAS
1 - Spix & Von Martius. Viagem pelo Brasil (1817), 2ª ed., SP, Melhoramentos, s/d., pp. 129-131.
2 - Brustoloni, J. A Senhora da Conceição Aparecida. 6ª ed., SP, Editora Santuário, 1986.
3 - Gomes, Ângela M. de Castro. A invenção do trabalhismo. SP/RJ, Vértice/IUPERJ, 1988.
4 - A imagem, feita de terracota, deve sua cor, provavelmente, ao fato de ter ficado submersa no lodo das águas do rio Paraíba e ter sido exposta à fumaça das velas quando ainda se encontrava na casa dos pescadores e no oratório do Porto de Itaguaçu. Nas descrições, em geral, faz-se referência à cor da imagem que aparece em oposição às suas outras características. Bom exemplo disso está na Crônica Anual dos Padres Jesuítas de Roma, em 1750, que diz: "A imagem é de cor escura, mas afamada pelos muitos milagres operados".
5 - Fernandes, Rubem César. "Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, sarava!" in: Sachs, V. (org.) Brasil & Estados Unidos: religião e identidade nacional. RJ, Graal, 1988, pp. 85-111.
6 - Darnton, R. O Grande Massacre dos Gatos. RJ, Graal, 1986.
Sobre a autora:
Juliana Beatriz Almeida de Souza Recebeu o prêmio do concurso de Iniciação Científica da Universidade Federal Fluminense pela pesquisa sobre a devoção a Nossa Senhora Aparecida.
Publicado no D.O. Leitura – Publicação Cultural da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – em dezembro de 1993.
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